A transição energética global não é apenas uma revolução tecnológica – trata-se também de uma profunda transformação no mundo do trabalho. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), as ações para limitar o aquecimento global a 2 °C podem gerar um saldo líquido de até 18 milhões de novos empregos no mundo até 2030, especialmente em setores ligados à energia limpa, veículos elétricos e eficiência energética[1]. No entanto, essa transição também implicará em desafios relevantes: cerca de 6 milhões de empregos desaparecerão em indústrias intensivas em carbono e recursos, como mineração, produção de cimento, petróleo e gás, e siderurgia.
Ao falar sobre a transição energética, é comum o debate se concentrar nas tecnologias – eletrolisadores, células a combustível, infraestrutura, segurança, regulação –, mas pouco se discute um componente essencial para o sucesso dessa transformação: a força de trabalho que vai operacionalizá-la.
A dimensão estratégica do capital humano
Nesse sentido, para compreender o estado atual da discussão sobre competências profissionais na economia do hidrogênio, foi realizada uma revisão de escopo exploratória[2], na qual a pesquisa se baseou em palavras-chave como “green hydrogen workforce”, “training and education” e “jobs and skills in the hydrogen economy”, resultando em um conjunto representativo de mais de 50 publicações. Dentre elas, destacam-se estudos sobre capacitação técnica e educacional, análises sobre dinâmicas da força de trabalho na transição energética e pesquisas que discutem perfis profissionais emergentes. O formato não foi exaustivo, mas sim intencionalmente amplo, visando identificar tendências e desafios no campo, oferecendo, assim, subsídios para reflexão estratégica, design de políticas públicas e investimento em formação de capital humano, a fim de abordar de forma estruturada os perfis profissionais emergentes.
Esses dados revelam um paradoxo: enquanto os investimentos em infraestrutura e tecnologia estão acelerando, a discussão sobre capital humano – quem vai operar, manter, certificar, projetar e implementar essas soluções – ainda é escassa. E, mais preocupante: poucos artigos trazem análises qualitativas profundas sobre a natureza das novas ocupações ou sobre como os sistemas educacionais precisam responder a essa demanda.
Cenários internacionais: oportunidades e dilemas
Mesmo que a discussão ainda seja incipiente, existem exemplos que sinalizam as competências que serão demandadas. Um estudo europeu estima que a transição para o hidrogênio por eletrólise poderá gerar cerca de 40 mil novos empregos até 2050, concentrados principalmente na Europa Ocidental – mas alerta que parte das regiões produtoras de hidrogênio fóssil poderá sofrer perdas líquidas[3]. Mesmo considerando empregos adicionais na geração de energia renovável, o setor de hidrogênio de baixo carbono deverá oferecer apenas cerca de 10% dos empregos atuais da produção fóssil europeia, o que evidencia o risco de descompassos territoriais e a necessidade urgente de planos de transição e qualificação para múltiplas oportunidades da economia verde. Projeções mais amplas, como o relatório Hydrogen Roadmap Europe[4], estimam até 5,4 milhões de empregos em toda a cadeia de valor do hidrogênio na Europa – incluindo geração elétrica, transporte e aquecimento –, refletindo cenários de maior integração setorial.
O estudo de Beasy et al. (2023)[5] evidencia lacunas críticas na formação para a economia do hidrogênio verde na Austrália. Com base em uma pesquisa com 41 representantes do setor, mais de 70% dos respondentes apontaram a necessidade de educação e treinamento em temas técnicos como eletrólise, células a combustível, armazenamento de hidrogênio e infraestrutura de abastecimento. O estudo também chama atenção para o desalinhamento entre a rápida evolução tecnológica e a rigidez das estruturas formais de formação profissional. Há práticas bottom-up conduzidas por fabricantes de equipamentos, que muitas vezes controlam o acesso ao conhecimento técnico via treinamentos próprios. Essa fragmentação pode comprometer a equidade, a padronização e a escalabilidade do ecossistema de capacitação para o hidrogênio.
Na Arábia Saudita, por exemplo, a transição para energias renováveis, incluindo hidrogênio, poderá gerar cerca de 137 mil novos empregos, contribuir com US$ 51 bilhões ao PIB e gerar entre US$ 40 e 60 bilhões em exportações de produtos e serviços ligados à energia alternativa[6]. Esses indicadores integram as metas da Vision 2030 e ilustram o potencial econômico da diversificação energética no país. No entanto, o próprio estudo alerta para barreiras estruturais, como a dependência de mão de obra estrangeira, os altos custos iniciais e a baixa articulação entre indústria e sistemas de capacitação locais, fatores que podem limitar o alcance real dessas metas.
Até 2030, será necessário implantar mais de 10 mil estações de abastecimento de hidrogênio, reduzir o custo do hidrogênio verde de aproximadamente US$ 5/kg para menos de US$ 2/kg e ampliar substancialmente a infraestrutura de transporte, armazenamento e segurança – medidas fundamentais para viabilizar sua adoção em larga escala e cumprir as metas globais de descarbonização até meados do século[7]. O estudo também ressalta a importância de protocolos rigorosos de manuseio e de programas de conscientização pública, apontando que esses avanços dependerão da formação de profissionais especializados em engenharia, operação, logística, regulação e comunicação científica – áreas críticas para sustentar um ecossistema de hidrogênio seguro, eficiente e socialmente aceito.
No contexto cearense, a demanda por qualificação ganha ainda mais relevância quando se observam os dados da projeção de impactos da operação do Hub de Hidrogênio Verde no Ceará[8]. Durante a fase de construção, que deve se estender por oito anos, estima-se a geração de aproximadamente 200 mil postos de trabalho, impulsionando um acréscimo de R$ 21,5 bilhões no PIB industrial e R$ 39,6 bilhões no PIB total do estado. Já na fase de operação, o Hub deverá gerar 24,2 mil empregos permanentes e contribuir com R$ 12,1 bilhões para o PIB industrial cearense. Esses números confirmam o potencial econômico do hidrogênio verde, mas também reforçam a urgência de planejar, estruturar e acelerar programas de capacitação técnica, superior e de requalificação profissional, capazes de atender às múltiplas demandas que emergem em toda a cadeia de valor, desde a produção até a logística, a certificação, a manutenção e o consumo de hidrogênio e seus derivados.
Formação profissional, educação e competências para o futuro
Em uma revisão sistemática, McHenry et al. (2024)[9] apontam que a maioria dos estudos sobre educação em hidrogênio ainda se apoia em experiências pessoais ou recomendações genéricas, com pouca articulação com dados oriundos da realidade do setor. Embora haja consenso sobre a importância de conteúdos técnicos – como segurança, análise de ciclo de vida, termodinâmica, eletroquímica e tecnologias/funcionamento dos eletrolisadores –, aspectos sociotécnicos essenciais, como pensamento crítico e tomada de decisão, raramente são tratados com profundidade.
O estudo também destaca a escassez de cooperação efetiva entre universidades e setor produtivo, o que limita o desenvolvimento de programas formativos ajustados às demandas regionais. Diante disso, há urgência de programas formativos integrados, baseados em evidências empíricas e voltados à formação de profissionais capazes de atuar com responsabilidade, inovação e segurança na cadeia do hidrogênio de baixa emissão, considerando tanto os desafios técnicos quanto os sociais da transição energética.
Essas evidências ajudam a delinear caminhos possíveis e também alertam para dilemas estruturais na formação de mão de obra. Algumas tendências da economia do hidrogênio podem afetar diretamente os trabalhadores e o mercado de trabalho, com base em projeções observadas em diferentes países: o aumento da demanda por hidrogênio tende a expandir o número de empregos e a escala do setor; por outro lado, a redução do custo da mão de obra, embora impulsione a competitividade, pode pressionar salários e comprometer a justiça social.
A redução dos custos de transporte beneficia regiões com alta disponibilidade de fontes renováveis, mas não implica, necessariamente, em geração significativa de postos de trabalho. A modernização de plantas existentes de reforma a vapor com captura de carbono pode preservar empregos locais, mas entra em tensão com metas globais de eletrólise. Já os ganhos de eficiência na produção, ainda que positivos sob o ponto de vista industrial, tendem a reduzir a demanda por mão de obra.
Essa leitura evidencia um paradoxo importante: o crescimento do setor não garante geração de empregos de qualidade e, em alguns casos, pode até intensificar desigualdades ou concentrar oportunidades em regiões específicas. Planejar o futuro do trabalho na cadeia do hidrogênio, portanto, exige mais do que acompanhar a evolução tecnológica; exige também decisões estratégicas sobre inclusão, qualificação e redistribuição de oportunidades5.
A formação profissional leva tempo, fazendo-se necessária uma atuação antecipatória e estratégica. Caso contrário, o Brasil corre o risco de repetir erros históricos, como se tornar um exportador de commodities ao importar tecnologia, depender de mão de obra estrangeira ou, pior, perder a janela de oportunidade de se posicionar como líder exportador de soluções em hidrogênio verde. Sem profissionais, não há infraestrutura funcional. Sem capacitação, não há escala. Sem articulação entre setor produtivo, instituições de ensino e governo, não há futuro verde – apenas promessas técnicas não cumpridas. A economia do hidrogênio não será apenas verde. Ela precisa ser inclusiva, qualificada e estrategicamente planejada.
No Ceará, iniciativas já começam a apontar caminhos concretos. O Observatório da Indústria iniciou o projeto Educação e Competências para o Futuro – Hidrogênio Verde, que combina análise prospectiva com construção coletiva de perfis profissionais para a cadeia do hidrogênio verde. A iniciativa foi precedida por uma ampla pesquisa sobre tendências do setor, seguida de um painel de especialistas que envolveu o setor produtivo, o governo e a academia para validar as competências profissionais necessárias para atuar na cadeia de valor do hidrogênio, fortalecendo as bases para políticas de formação alinhadas à nova economia do hidrogênio verde e/ou de baixa emissão.
Com base em dados, tendências e colaboração estratégica, o Observatório reforça seu papel como agente de inteligência e ação territorial, contribuindo para que a transição energética no Brasil seja não apenas tecnológica, mas também inclusiva, qualificada e estrategicamente planejada.
Especialista de Prospectiva Estratégica do Observatório da Indústria Ceará
[1] INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. World employment and social outlook 2018: greening with jobs. 2018. Disponível em: https://www.ilo.org/publications/world-employment-and-social-outlook-2018-greening-jobs. Acesso em: 23 jun. 2025.
[2] PETERS, M. D. J. et al. Updated methodological guidance for the conduct of scoping reviews. JBI Evidence Implementation, v. 19, n. 1, p. 3-10, 2021. DOI: 10.1097/XEB.0000000000000277.
[3] GANTER, A. et al. (2024). Shifting to low-carbon hydrogen production supported by electrolysis: employment impacts in the EU. One Earth, v.7, n.11, p. 1981-1993, 2024. DOI: https://doi.org/10.1016/j.oneear.2024.10.009.
[4] HYDROGEN EUROPE. Hydrogen Roadmap Europe: a sustainable pathway for the European Energy Transition. Brussels: Fuel Cells and Hydrogen Joint Undertaking (FCH JU), 2019. Disponível em: https://www.clean-hydrogen.europa.eu/document/download/b4ea2b61-a7da-4484-a522-1b2232bff134_en?filename=Hydrogen%20Roadmap%20Europe_Report.pdf. Acesso em: 23 jun. 2025.
[5] BEASY, K. et al. Skilling the green hydrogen economy: a case study from Australia. International Journal of Hydrogen Energy, v. 48, n. 27, p. 10115-10126, 2023. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijhydene.2023.02.061.
[6] ISLAM, M. M.; ALI, A. M. Sustainable green energy transition in Saudi Arabia: characterizing policy framework, interrelations and future research directions. Next Energy, v. 5, p. 100161, 2024. DOI: https://doi.org/10.1016/j.nxener.2024.100161.
[7] SADEQ, A. M. et al. Advances and challenges in hydrogen energy: a comprehensive review. Science of the Total Environment, v. 939, p. 173622, 2024. DOI: https://doi.org/10.1016/j.scitotenv.2024.173622.
[8] OBSERVATÓRIO DA INDÚSTRIA CEARÁ; FIEC; ADECE; CEARÁ (Estado). Projeção de impacto econômico do Hub de Hidrogênio Verde no Ceará. Fortaleza: Observatório da Indústria do Ceará, 2024.
[9] McHENRY, R.; KRISHNAN, S.; TUCK, L. Knowledge, skills, and attributes needed for developing a hydrogen engineering workforce: a systematic review of literature on hydrogen engineering education. International Journal of Hydrogen Energy, v. 72, p. 380-387, 2024.DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijhydene.2024.05.380.